sábado, 11 de agosto de 2012

Pergaminho II ~ Arturo e a Harpa.

Nessas linhas que escrevo sem muito propósito haverá sempre alguma busca lacônica pelo sabor da culpa. A culpa, entre todas as coisas do mundo, é a que mais liberta. E liberta de uma forma punitiva que, imagino eu, todos os seres humanos buscam, de uma forma ou de outra. Pra liberdade realmente germinar, criar raízes, precisa-se de um solo cicatrizado. O machucado faz a cura, e a culpa semeia o prazer da punição e nos coloca de volta em pé.

Eu ainda estou de joelhos.

O fato é que, subindo as escadas em direção ao grande portão que introduzia ao castelo, a presença de Will a dois passos de distância era algo indefinível, entre o susto e o cárcere. Minha respiração – já normalmente ofegante – titubeava até o abismo do soluço. Não que a figura do menino me irritasse ou que fosse desagradável: ele acompanhava a boquiaberta fila indiana com uma serenidade tão díspar que parecia já conhecer Hogwarts como se fosse a sua própria casa, soltando vagos sorrisos de alegria comedida em minha direção, em intervalos de tempo minuciosamente concebidos. Ainda assim, meu peito se contraía em dor, como se quisesse buscar palavras ainda não inventadas para se proferir em gritos afônicos. Seria assim tão aterrorizante qualquer amizade que eu porventura fizesse? O convite para uma relação harmônica e gratuita já nos primeiros segundos da vida acadêmica bruxa me pareceu deveras suspeitável. Fui uma criança acostumada a receber coisas em troca de outras. “Se você quer sair hoje à noite conosco, Liz, termine de ler esse livro.” “Esses presentes de aniversário você ganhou porque foi uma boa menina. Não me decepcione nesse próximo ano, hein?” “Enviarei você a Hogwarts porque preciso que se torne uma grande bruxa um dia, minha filha...”. No meu imaginário ainda infantil eu seria capaz de esquecer a voz de Relius, mas às vezes eu suspeitava que a voz do meu pensamento fosse a voz do meu pai, crua e simples. Olhei para Willhelm de soslaio, com a vergonhosa suspeita que ele talvez fosse um espião me vigiando, e consegui sentir um quase-ódio do garoto. Também me imaginava desmascarando-o aos berros, ali naqueles degraus, como quem enfrenta o seu último algoz. Os olhos marejados em lágrimas eram fáceis de se notar, e ele notou.

– Ei Liz, veja!

Meus devaneios foram logo ceifados pela imagem de vários alunos gargalhando de uma silhueta difícil de compreender. De alguma forma os seus fios de cabelo viajavam pelas mais diversas tonalidades de cor, ora no bestificante vermelho-fogo, ora num branco plácido como a neve noturna. Algumas cores eu não sabia sequer nomear. Eu não consegui, naquele momento, identificar se a sua feição estava constrangida com a situação ou se a causara propositalmente, mas a forma como ele afundava seu rosto nas mãos em concha e balançava a cabeça em negação tirou a minha dúvida rapidamente. O fenômeno, apesar de visualmente interessante, não me chocou. Uma pequena repulsa foi o que senti lá no fundo da garganta, repulsa pelos alunos zombeteiros. Não que eu estivesse dominada por um desejo heroico de defender o rapaz, porém aquele escárnio todo poderia e provavelmente seria em algum momento voltado para mim, para os meus cabelos estranhamente espiralados ou para minha pele de cera e a bochecha gorda. Eu não queria ser notada e, por mais que meu coração sinceramente se compadecesse da algazarra toda que vitimava o pequeno bruxo colorido, qualquer singela aproximação destruiria minha intenção ao anonimato. Willhelm, sem nenhum tipo de preocupação mesquinha e sem delongas, aproximou-se dele, falando qualquer coisa que não pude ouvir enquanto o espalmava amigavelmente no ombro, recebendo um lúgubre sorriso de meio-lábio em resposta. Uma pedra seca tamborilou no meu estômago: eu estava sentindo uma espécie arcaica de ciúmes, mas não sabia naquele momento que se tratava disso. Costumeiramente, quando um sentimento novo surge, deixei banhar-me em raiva para que a outra sensação se esconda e uma nova e facilmente nomeável tome seu lugar. Cerrei os punhos e deixei que as unhas escarlates arranhassem o pulso, transformando a dor interna numa dor externa e expurgável. Não negaria em nenhum momento da minha vida que sou uma pessoa contraditória, porque eu sou – e demorei muito para entender e aceitar – o encontro dos opostos, uma contradição com pernas, braços e uma face de lua cheia.

Mas a dor logo foi vaporizada quando aquelas notas musicais adentraram pelos meus ouvidos, como imensas cachoeiras quentes, reconfortantes. Eu não era capaz de precisar a distância da qual a fonte daquele som estava, já que parecia retumbar diretamente dentro do meu crânio e ecoar em todas as suas quinas. Basta apenas lembrar-se da melodia, no abismo de um silêncio como esse em que me encontro agora, para que eu reconstrua aquela sensação, a de se afogar num oceano de harmonia. Entre todos os alunos não havia um com os lábios colados, até mesmo a rima da boca entreaberta surgia como uma porta de entrada para aquela belíssima canção. Era melancólica, mas não triste. Era como um toque sereno de compreensão sobre as verdades do mundo e preocupação com as dores de todos. Lenta, mas forte. Até mesmo meus ossos pareciam arrepiados, juntamente aos músculos retesados. Quis chorar, mas as lágrimas não vieram para acompanhar as outras alunas marejando os piscares eufóricos. Ao passo que a fila prosseguia, uma imensa harpa dourada se projetou exatamente a frente do portão principal de Hogwarts. Dourada, com filetes prateados contornando as imensas asas que dormiam em sua face côncava. Suas inúmeras cordas eram quase invisíveis, podendo ser visualizadas apenas quando seu dono as dedilhava com a leveza de um suspiro. Não conseguia compreender como uma pessoa com a estatura normal poderia manusear aquele instrumento, e tão logo pensei nisso, a melodia encontrou seu fim, quando o músico finalmente se levantou e lançou um olhar globoso e compenetrado para todas as crianças que se esgueiravam para vê-lo.

– Eu dedico essa canção a todos vocês, como um cântaro de liberdade e benfazeja que deverá contornar todas as suas ações a partir do momento que entrarem por esse portão! – apenas um fio de voz, quase se dissolvendo no ar, escapulia pelos lábios crispados.

Sua pele parecia um pergaminho, quase completamente bege. Os olhos eram tão negros que era difícil separar a pupila da íris, e eram parcialmente ocultos pela enorme cabeleira também escura que lhe revolvia praticamente todo o corpo, magro e de traços obtusos. Nunca antes vi um homem com cabelos tão extensos. Deliberadamente soltos, chegavam à altura do joelho num trajeto absurdamente retilíneo. A vestimenta era tão adornada que eu não sei nomeá-la, não era o que comumente os bruxos usavam, como sobretudos escuros ou capas. Havia tecido por cima de tecido revolvendo tudo num ofuscante tom de amarelo, costurado aqui e ali por linhas vermelhas que confluíam em formas diversas como dragões, chamas e uma fênix adormecida. Cada simples movimento daquele homem revolvia camadas e camadas de pano que lufavam o ar a sua volta, talvez por isso ele parecia economizar tanto nas gesticulações.

– Eu sou Arturo PlavaLaguna, professor de adivinhação, tarólogo bruxo, mestre em runas antigas e diretor da Lufa-Lufa. Sejam muito bem vindos! – curvou-se sobre si mesmo num cumprimento saudoso que me fez corar – Todos os dias que passarem aqui, espero eu, serão marcados pela bênção da sabedoria, do conhecimento e da maturidade intelectual. A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts passa por um delicado momento de ameaça a cultura bruxa, e depositamos imensa esperança em vocês, novos constituintes dessa família em construção.

Eu havia me esquecido completamente dos assuntos que me irritaram outrora, e naquele momento tudo que eu poderia experimentar era uma profunda ansiedade. Algo dentro de mim, que me compunha enquanto Liz desde os meus primórdios, parecia se comunicar com toda essa atmosfera mágica, simbólica e misteriosa que surgia diante de mim. De forma que meu corpo parecia ressonar, o coração trepidando em batidas fortes. Suor. Arturo, e sinto profundas saudades desse Arturo, caminhou entre nós tão lentamente que todos se petrificaram, como se ele quisesse sentir algum tipo de aura que nos circundasse. Ele olhou pra mim de uma forma reticente que eu interpretei, talvez arrogantemente, como uma singela curiosidade. Mas foi no menino metamorfose que ele deteve sua atenção.

– Seu nome?

– Noah. – ele respondeu tão rapidamente que parecia já estar preparado para o questionamento, sem exibir nenhum traço de nervosismo.

– Sobrenome?

– Não tenho, professor.

– Interessante... Vou querer conversar com você depois, suas habilidades precisam ser controladas para que não lhe causem maior constrangimento. Apesar de que, a partir de agora, qualquer tipo de zombaria infantil que acontecer em minha presença certamente será punida com pouca ou nenhuma piedade.

– Obrigado, professor. – sua secura me deixou estupefata. Lembro exatamente do meu pensamento durante aquele diálogo: se fosse comigo, minhas sílabas sairiam duplicadas e minhas pernas tremeriam ao ponto do desequilíbrio.

– Atitudes grandiosas e corajosas, entretanto... – girou no próprio eixo e agora fitava Will, sem esconder um tímido sorriso – Sempre serão devidamente recompensadas.

Entre murmurinhos randômicos de excitação e dúvidas, o grupo foi se dirigindo até a enorme harpa que, inusitadamente, abriu suas asas e voou rapsódica até a porta do salão principal, numa indômita vontade própria. Cravejou-se no retângulo de madeira como uma intrínseca, dourada e alada tatuagem. Seus fios que em outro momento foram dedilhados em uma linda sinfonia agora precipitavam entre as extremidades verticais como uma extensa renda, e ao passo que a fila adentrava o castelo agradáveis sons inundavam nosso íntimo. Encorajando-nos. O portão final era grandioso e colossal, um verdadeiro obelisco que tinha tanto o objetivo de acolher quanto de proteger o recanto bruxo. E o fazia com beleza e imponência. Nunca me esquecerei do primeiro truque de Hogwarts que felicitou meus olhos inocentes. Esses olhos agora tão cansados de se surpreender.

7 comentários:

  1. Que bonito!!! A parte que descreve a música faz quase a gente ouvir uma música de verdade ^^
    parabéns!

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  2. Incrível! Em alguns momentos me senti Liz... Quero mais!

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  3. Gui, pra escrever tão bem assim, como faz? AUSHAUSHUASH

    Mas falando sério, que emocionante!
    Seus textos parecem que... ah! não sei exatamente a expressão que quero usar, mas parecem que flutuam eu acho. kkkk sempre rico de palavras e muito fácil de ler.

    Muito bom mesmo, Gui!
    Espero ansiosamente pelo capítulo 3.

    Bjss, @UmaGrifinoriana

    P.S.: Tenho que desenvolver uma técnica pra não chorar com seus textos kkkkkkkkkkk

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  4. Simplesmente maravilhoso. Arturo PlavaLaguna lindamente construido, singelo, simples e completo. Meus parabéns. ansioso pelos próximos capítulos.

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  5. Decididamente tocante. Gosto da maneira descritiva usada, e o mundo de Hogwarts necessita exatamente do tipo de desrição que você usa, uma descrição mágica. Arturo e Liz são personagens que encantam, muito bem construídos. Quero ver até onde eles vão. Tá de Parabéns, quero logo abrir o terceiro pergaminho.

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  6. Adoro quando tem continuações, e quando é um texto gostoso de ler como este então, parabéns.

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