segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pergaminho I ~ Olá, Hogwarts!

Havia qualquer coisa de triste naquela paisagem que me surpreendeu de um jeito estranho. As árvores revoltas nos próprios caules, tortuosas e distantes umas das outras, aparentavam ser as sobreviventes do mais tenebroso dilúvio que passou pela Terra. As gramíneas cresciam desarmônicas numa cor rançosa entre o marrom e o vermelho. Faltava o verde dos campos, e aquele cheiro salgado de planta crescendo. E a solidão impregnava tudo por aqui e por ali, também lá no fundo onde eu não podia enxergar. No céu, dois corvos, cúmplices dessa tragédia visual, rodopiavam com certa preguiça do vôo. O retrato que a janela do trem recortava me inundou numa melancolia que caiu como gelo e ácido no estômago vazio. Não era bem o que eu esperava como cartão postal de Hogwarts.

Mas naquele instante em que os olhos vão perdendo o objetivo, vi eu mesma num reflexo trêmulo de pouco foco. Deveras impecável nas vestes e no penteado, mas jamais alguém diria que era a mais bela silhueta feminina. Também não a segunda mais bela, ou terceira, ou quarta... Os cabelos que naquela idade eram fartamente cacheados padeciam em duas espirais acinzentadas à direita e à esquerda, contornando simetricamente o rosto irritantemente circular, para então precipitar até uma linha imaginária que passava pelo umbigo. Contudo, sem nenhum vestígio de queixo. O nariz era delicado e eu gostava de seus contornos. Meu pai dizia que a ponta lembrava um pequeno coração. Concentrando muito, talvez. Os olhos que desconstruíam a fineza de qualquer traço de qualquer pessoa: eram do mais profundo negro, a íris gorda e os cílios consideravelmente longos. Pareciam ter vida própria, espreitando tudo e fotografando tudo.

Essas memórias, hoje tão longínquas... Passam como um filme antigo na minha mente. De qualidade duvidosa. Dentro dele sou uma personagem e nada mais. Dentre as poucas coisas que me carecem, sinto falta da inocência de criança que eu carregava no olhar, a pureza esmaecida, e é justamente essa inocência que cria um abismo colossal entre a Liz que fui e essa Liz que escreve. E então só posso falar de mim por reflexos disformes, vidros ou espelhos, já que olhar fixo para o abismo dói - no escuro dele dorme tudo que perdi ao longo desses anos.

O ar rarefeito dentro da cabine me tonteava. Um torpor sonâmbulo de alma notívaga, escurecendo os arredores do campo visual. As pálpebras quase cediam à gravidade agora aparentemente mais forte, inundando a consciência com pensamentos mesmerizados do espaço morto entre a vida e o sono.

Nesses momentos onde a realidade se dissolve no mar do subjetivo, era sempre o semblante de Relius, meu pai, que se esgueirava nas divagações. Aquela feição indômita, de palavras sempre curtas e o rosto pontiagudo. Talvez já tivessem sido mais maleáveis, um dia. Pois muitas vezes me perguntei como eu, ciente da criatura redonda que eu era, podia compartilhar algum parentesco com aquele homem firme, que economizava até seus traços. Também de poucos abraços. Exalava uma expectativa silenciosa pelo meu ingresso na Escola de Magia e Bruxaria que se traduzia em suspiros inebriantes e soslaios repetidos. Sempre afundando a mão firme na cabeleira grisalha como quem desgrenha os poucos fios que lhe restam com a preocupação de um desastre iminente.

Um silvo comum de uma respiração ofegosa me fez abrir os olhos. O garoto me ofereceu um sorriso corredio.

- Oi! – lampejou num tom alto demais pros meus ouvidos recém despertos. Curvou-se minimamente como um servo porta-se diante de seu empregador.

– Olá... – respondi com demasiada secura, sentindo as têmporas flamejarem e as sobrancelhas franzirem sem meu consentimento.

Contatos com crianças da minha idade eram quase inexistentes em Waterloo, onde morei. Aqueles dentes estampados na minha direção em forma de meia lua na face retangular foram as primeiras portas para os júbilos da verdadeira infância, ainda que tardia e infelizmente curta. Lembrança ímpar nessa minha mente confusa. Enraizou forte no firmamento quebradiço. E se eram portas também foram janelas, as janelas que nunca se fecham, voltadas sempre para tudo que há de cor e vida no mundo. Janelas de amizade, essa magia forte que ninguém domina.

Mas a primeira impressão daquele menino costurou-se em mim. Eu jamais esqueci e nem me permitiria – ele era antes de tudo um pandemônio elegante. A começar pelos ébrios fios de cabelo que não seguiam a lógica alguma senão a de crescer em todas as direções como um labirinto em expansão. Não eram lisos, mas havia naquela desorganização negra e volumosa um tom masculinizante que o amadurecia acima dos onze anos que tinha. O pensamento de afundar as mãos naquele lago felpudo em busca de qualquer coisa me divertira, quase o suficiente para me fazer rir.

– Meu nome é Willhelm Hackenhard. Pode me chamar de Will. Espero que não se importe sobre eu ter sentado na mesma cabine que você. O trem está muito vazio e eu não queria ficar sozinho, estou muito ansioso!

Aquela rouquidão áspera na voz acompanhou-o durante muitos anos. Tudo o que era proferido por sua boca tinha o efeito de captar a atenção das pessoas como um fenômeno raro da natureza. Não necessariamente belo, mas diferente e para alguns até pavoroso, como trovões que iluminam campos virgens em tempestades furiosas. Os lábios tinham ângulos perfeitamente simétricos, e quando colados eis uma linha férrea cravejada na pele parda. O nariz era robusto e selvagem, e no seu terço superior duas pequenas elevações ósseas nas laterais elevavam sua imponência. O septo era perfeitamente retilíneo. Estranhamente os olhos, de um castanho comum, por vezes se comprimiam como se quisessem ser orientais, desobedecendo a qualquer padrão coerente de seus contornos.

– Claro que não! – anuí, forçando uma naturalidade que saiu mais teatral do que o planejado – Eu realmente estava me questionando onde estavam os outros alunos. Mas a curiosidade foi vencida pelo sono e eu acabei dormindo um pouquinho. Muito prazer Will, sou Liz Agnis Lanier. Ou somente Liz Lanier. Ou melhor, Liz e só – Ele me deu uma expressão risível e simpática diante do encadeamento confuso. E de novo curvou-se solenemente. Nunca soube como se livrar desse hábito. E eu tampouco.

Will tinha consigo objetos estranhos que à primeira vista não me eram nada mais que um acervo de velhacarias desconhecidas. Com a mão direita, achatada e de dedos longos, pinçava dois retângulos pretos que nada mais pareciam do que meros retângulos pretos. A esquerda girava no indicador um chapéu também preto, de aba curta e o fundo alongado, que ele observava rodopiar infinitamente acelerando e freando a órbita a seu bel prazer. Uma mola multicolorida enrolava o antebraço dessa mesma mão como uma extensa pulseira por cima do sobretudo encardido. E ele ziguezagueava o brinquedo de uma maneira automática, quase robótica. Passei alguns segundos compenetrada observando o titubear do verde que se tornava azul e padecia enfim no amarelo. Eu sempre exibia uma feição carrancuda – várias e várias dobras na testa e o nariz que se contorcia quase em espiral – quando precisava concentrar em algo, e me retesei com medo de afastá-lo. Tentando manter a candura de moça. Ao seu lado alguns livros, sem nenhum aspecto acadêmico, dormiam e resfolegavam no assento ao dissabor do trem que, agora, trepidava em demasia. As bagatelas tilintavam. Will parecia não se importar. O jovem era um caleidoscópio. Aos meus olhos, a imprevisibilidade que ele apetecia se tornou o primeiro grande fascínio, comum aos invejosos de bom coração, nesse solitário ingresso ao mundo mágico. De súbito minha patética simplicidade me envergonhou, com uma picada fria e recorrente no íntimo. Virei o rosto para a janela novamente.

Os anos se passaram, mas o fascínio pela arquitetura de Hogwarts sempre persistira. Quando criança, em que o que é grande toma proporções ainda maiores, chegava a marejar os olhos e eriçar os pêlos da nuca. Lembro que quando avistei o castelo pela primeira vez o crepúsculo forrava o céu com seu manto roxo e enviava dedos de luz pálida, ressumando em toda a sua grandeza aspergida de glória e rusticidade. As grandes torres abobadadas, de tamanhos variados e invencíveis às intempéries de sua própria existência, erguiam-se como verdadeiros obeliscos acima de planícies verdejantes e nodosas salpicadas aqui e ali por pedregulhos também seculares. Onde residia parte ímpar da história da cultura bruxa da qual agora eu faria parte. Mas havia no meu imaginário infantil uma vontade trôpega de ir além. Muitos bruxos pisaram naqueles terrenos, durante séculos e séculos. Poucos realmente se imortalizaram através da história. E eu podia sentir vibrar na garganta gritos de euforia que morreram no silêncio, caindo no precipício de um lamento suspiroso. Gritos que nada mais eram que a vontade de escrever minhas próprias linhas naqueles fascículos cheios de hecatombes e reconquistas. Não sabia eu naquele instante que eu estaria predestinada a fazê-lo desde o meu nascimento. Triste acidente.

Se soubesse, nada mais desejaria do que viver os dramas fáceis de uma menina comum.

5 comentários:

  1. Muito bom! Dá livro isso daí ^^

    Não só a história, é bom ver que há poética no texto.

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  2. Acho que você escreve muito bem, Juro! Não só o fato de ser um texto com uma ótima estrutura, mas como disse o Igor, a poética é ótima. Existe um certo mistério na personagem e é bom saber que não vamos conhece-la logo de primeira.

    Cadê a continuação?? hahah

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  3. De verdade você escreve muito bem, deve com certeza investir nisso, e eu adorei o texto.
    Meus parabéns e queremos continuação!!!

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  4. Belo texto, belo começo, e uma bela personagem feminina. Tenho fascínio por elas, e Liz já desponta como uma personagem que me desperta interesse. Quero ver como continua, tá de parabéns!!

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  5. Gui. de novo me fazendo ficar emocionada.. que texto lindo véi! super parabéns de verdade. se fizer um livro sou a primeira a comprar AUHSAUSH

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